Este admirável personagem da história brasileira e maçônica.
Sim, maçônica, porque Luiz, não era tão somente um membro da instituição. Ele encarnou perfeitamente os princípios e valores que norteiam a vida de um maçom. Nela, é fácil identificar uma personalidade ajustada aos valores da Ordem, através de seus passos, sua conduta, sua vida.
Gama nasceu em 21/06/1830, em Salvador, filho de uma negra com um fidalgo pertencente a uma das principais famílias da Bahia de origem portuguesa.
Seus pais eram livres e, assim, ele gozou de sua infância na companhia deles até os 10 anos de idade. Em 10 de novembro de 1840, seu pai, que havia herdado o valioso patrimônio de uma tia e dilapidado-o em menos de quatro anos, se encontrava enfrentando uma sofrida pobreza.
Assim, aproveitando-se do preconceito racial reinante e da vulnerabilidade do filho e de sua mãe (negros), levou o pequeno Luiz para o Rio de Janeiro, vendendo-o como escravo e despachando-o a bordo de um navio para São Paulo.
Quantas vezes, não testemunhamos em sociedade os momentaneamente poderosos se aproveitarem da vulnerabilidade temporária da sociedade ou de grupos, para perpetrar ofensas e desrespeitos ao direito e à justiça, não é verdade? Para nós, maçons, entretanto, a Ordem faz uma alerta:
“… infeliz do Maçom que consentir tornar-se instrumento da tirania, apoio da usurpação e apologista da injustiça e do desprezo às leis que contém as eternas garantias de Liberdade.”
Ainda assim, nosso amado Irmão, apesar das dores e das humilhações sofridas, não possuía em seu coração espaço para o ódio ou para a vingança, razão pela qual, ocultou caridosamente, por toda a vida, a identidade de seu pai, não lhe manchando o nome com o crime perpetrado, enquanto exaltava o de sua mãe por sua beleza, altivez e espírito revolucionário.
Procurou-a, inclusive, exaustivamente, por muito tempo, sem sucesso. Como herança de sua mãe, manteve consigo o anseio por justiça que, em muito, se afina com a doutrina desta nobre instituição.
Até os 17 anos, Luiz permaneceu analfabeto, cativo em Limeira, até que um hóspede da fazenda lhe ensinou a ler e escrever, permitindo-lhe, assim, tomar conhecimento de sua ilegal escravidão, razão pela qual, fugiu aos 18 anos para a Capital, momento em que se inicia sua vida de homem livre, trabalhando na polícia.
No serviço público, ocupou diversos postos até tornar-se amanuense, aquele que escreve ou copia textos à mão, da Secretaria de Polícia da Província de São Paulo. Imagine, você, numa sociedade de analfabetos, um negro amanuense!!!
Gama, tentou ingressar no curso de Direito do Largo de São Francisco, mas o preconceito (Ah! O preconceito!) obstaculizou-o, razão pela qual frequentava as aulas apenas como ouvinte, tendo que suportar as ironias e pilhérias deselegantes dos alunos e professores.
Já instruído, tornou-se, então, Rábula ou provisionado, indivíduo que, não possuindo formação acadêmica e/ou titulação em Direito (bacharelado), obtinha a autorização do Poder Judiciário para a postulação em juízo.
Como Rábula foi responsável pela libertação de mais de 500 escravos, o que nos faz lembrar diversas máximas maçônicas:
“ … condena a exploração do homem… “ “… os homens são livres e iguais em direitos. …” “- Aqui, trabalhamos para acostumar o nosso espírito a curvar-se às grandes afeições e a não conceber senão ideias sólidas de Bondade e de Virtude …”
O “Amigo de Todos” soube muito bem praticar “a terna e consoladora amizade” que deve animar o coração de um Maçom, plantando-a e colhendo-a em suas relações.
Seu coração muito especial transformou o preconceito sofrido numa causa dos mais necessitados, não exclusivamente negra e abolicionista. Onde houvesse injustiça, ali estava ele a advogar por pobres de qualquer raça, havendo casos em que defendera imigrantes europeus lesados por brasileiros.
Nele não cabiam preconceitos de raça, de origem ou de classe, era um maçom de verdade.
Consta que Gama atuou também como jornalista, fundando com irmãos maçons os jornais Diabo Coxo e Cabrião. Era incansável em sua luta por levar luz à escuridão, com seus discursos e produções literárias. Era um intelectual respeitado, um homem de bem e sofreu perseguições por isso.
Gama, abolicionista e republicano, viveu toda a sua vida num mundo escravocrata e monarquista. Contudo, não se ajustou confortavelmente às circunstâncias da época, reproduzindo com sua conduta outra belíssima citação maçônica:
“É sempre pelo ideal e só pelo ideal, que nós nos dedicamos. Os homens sacrificam-se por visões, mas, o que o vulgo desdenha como ilusões, são as certezas do amanhã.”
Apesar de não haver testemunhado nem a abolição dos escravos, nem a proclamação da república, suas “ilusões” de homem bom, seus ideais de justiça, liberdade, igualdade e fraternidade, concretizar-se-iam no futuro, apesar de haver ainda hoje muito a ser conquistado no campo das igualdades raciais no Brasil. Ele fez de sua vida o que poderíamos chamar de “altar de sacrifício” para que pudéssemos estar vivendo hoje com um pouco mais de liberdade e justiça, apesar das ameaças contemporâneas.
Várias lojas maçônicas eram favoráveis a abolição e não seria diferente com a Loja Maçônica América, fundada por ele, em companhia de Ruy Barbosa. Quando de sua morte, Gama era o amado Venerável Mestre (Presidente). Quantos espíritos em formação não influenciou e influencia com suas ideias, instruções e condutas até hoje, não é mesmo?
Raul Pompéia nos conta:
..não sei que grandeza admirava naquele advogado, a receber constantemente em casa um mundo de gente faminta de liberdade, uns escravos humildes, esfarrapados, implorando libertação, como quem pede esmola; outros mostrando as mãos inflamadas e sangrentas das pancadas que lhes dera um bárbaro senhor; outros… inúmeros.
E Luís Gama os recebia a todos com a sua aspereza afável e atraente; e a todos satisfazia, praticando as mais angélicas ações, por entre uma saraivada de grossas pilhérias de velho sargento. Toda essa clientela miserável saía satisfeita, levando este uma consolação, aquele uma promessa, outro a liberdade, alguns um conselho fortificante.
E Luís Gama fazia tudo: libertava, consolava, dava conselhos, demandava, sacrificava-se, lutava, exauria-se no próprio ardor, como uma candeia iluminando à custa da própria vida as trevas do desespero daquele povo de infelizes, sem auferir uma sobra de lucro…E, por essa filosofia, empenhava-se de corpo e alma, fazia-se matar pelo bom…Pobre, muito pobre, deixava para os outros tudo o que lhe vinha das mãos de algum cliente mais abastado.
VIDA E LEGADO
O cortejo fúnebre que o conduziu à sua derradeira morada, formado por uma multidão, continha intelectuais, políticos e gente humilde a quem havia socorrido. O “Amigo de Todos” deixava a vida material para se eternizar na memória e na história brasileiras.
O corpo de Gama se desfez, mas a sua vida exemplar ainda reverbera, produzindo infindáveis capítulos. Em novembro de 2015, a OAB/SP conferiu-lhe o título de Advogado e em agosto de 2020, o Conselho Federal da Ordem homenageou-o instituindo o Prêmio Luiz Gama.
Sua vida e seu legado são citados ao redor do mundo como um homem extraordinário e sua vida tem sido revelada na cinematografia, literatura, história e até histórias em quadrinhos.
A luta de Gama ainda não terminou e mesmo tantos anos após a libertação dos escravos testemunhamos ainda o “defeito” (Defeito! Que absurdo!) da cor da pele ser obstáculo ao reconhecimento do direito desses indivíduos, mesmo vivendo num país predominantemente negro, mestiço, mulato, cafuso, pardo …
Esta é uma questão de interesse de todos porque não há como promover o desenvolvimento de um país, segregando a maior parte da população através do preconceito. Quantos indivíduos geniais não estarão agora subnutridos, sem teto, saúde, educação … sem a prometida dignidade insculpida na constituição.
Este pequeno artigo tem o propósito único de registrar o mérito de um homem verdadeiramente bom, generoso, idealista, ordeiro, sério e, principalmente, indiscriminadamente fraterno. É impossível deixar de se emocionar com um alguém assim!
Neste dia que festejamos uma importante conquista brasileira, a abolição dos escravos, é salutar e justo homenagear este herói de nosso país.
Viva Luiz Gama!
*Agenor Burla, Maçom.
Texto originalmente publicado em : https://www.portalviu.com.br/opiniao/luiz-gama-o-amigo-de-todos-e-veneravel-pelo-exemplo-de-vida
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